Nascido em Nova Iorque em 1944, José Brandão é um dos poucos designers gráficos em Portugal, da sua geração, com formação neste domínio, tendo-se licenciado em Design Gráfico (B.A. 1 class Honours) pelo Ravensbourne College of Art and Design ( Londres, 1970) como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, feito um estágio de pós-graduação na mesma instituição em 1971. Pertencendo a uma geração de transição, foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Design pela sua carreira em 2000 pelo Centro Português de Design. Foi comissário da exposição Sebastião Rodrigues, Designer, FC Gulbenkian, 1995 (Prémio APOM, melhor exposição desse ano). Tem uma produção relevante de livros, folhetos, programas, cartazes, selos e imagens corporativas para instituições como a Presidência da República, Assembleia da República, Tribunal Constitucional, Ministério da Educação, Banco de Portugal, CTT Correios de Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação R. Espírito Santo, Fundação Oriente, Comissão dos Descobrimentos, Fundação Luso-Americana, Fundo de Turismo, Instituto do Livro, Teatro São Luiz, entre muitas outras de idêntico prestigio e relevância.
É professor associado convidado da FAUTL, na Licenciatura de Design, onde é responsável cientifico das cadeiras de Projecto do Mestrado em Design na especialização em Design Gráfico
Arquitectura e Vida - Como caracterizariao trabalho do designer gráfico?
JOSÉ BRANDÃO - As questões que persistempara as pessoas em relação ao trabalho na área do design gráfico é perceber o que é e a forma como o interpretam. Em geral, ninguém sabe o que faz um designer gráfico, e eu até costumo dizer que "faço, cartas, cartazes, logótipos, etc:'. É como se se perguntasse ao médico o que faz, e ele dissesse: abro umas barrigas, olho para a boca das pessoas, apalpo-lhes os braços e olho-lhes para os olhos. Os médicos avaliam e diagnosticam, porque o objectivo é curar as pessoas e, no nosso caso, resolvemos problemas de comunicação, utilizando para isso um conjunto de meios: a indústria da impressão, a inserção de comunicação no espaço tridimensional ou, mais recentemente, no espaço Web. As pessoas têm pouca formação nestas áreas e avaliam muitas vezes apenas sob o ponto de vista formal ou estético. Essa é a primeira questão critica que convém perceber: sem descurar a vertente estética, somos acima de tudo comunicadores, e é da eficácia da nossa intervenção que advém um resultado que deve ser esteticamente satisfatório e apelativo, pois um dos objectivos da comunicação é que ela se torne mais eficaz.
AV- Qual o domínio em que, como
designer gráfico, intervém mais profundamente?
JB - É o livro, que é um objecto que já foi posto em causa, como muitos outros suportes desde que apareceu a televisão, a intenet, etc. Contudo, o que se tem verificado não é o seu desaparecimento, pois fizeram-se na década de 90 mais livros do que os que já se tinham feito em todo o tempo da humanidade. A
quantidade é absolutamente exponencial, não parou de maneira nenhuma. Sofreu foi profundas modificações, o objecto deixou de ser o mesmo, pela influência de todas as outras culturas muito mais visuais. O livro já não é o mesmo objecto que existia há 30 ou 40 anos, hoje é mais clarificado, acompanhado de muitas mais imagens muitas vezes reformuladas em diagramas, tomando muito mais expressivos todos os conteúdos da comunicação.
AV - Como estruturo os livros, tendo em vista a optimização da comunicação?
JB - Na estruturação das diversas formas organizar o livro, há que se identificar e reconhecer os diversos sectores. Há as notas ou formas de salientar episódios, de modo leitura se tome mais eficaz. O livro está a ser modificado, melhorado, a sofrer diversas influências, mas contínua a ser um projecto insuperável,
não requer nenhum hardware especial, não transportamos um computador, nem nenhum aparelho. Imagine ir para à casa de banho ver um CD-ROM ... Pode-se ir com um livro ou com um jornal, pois não se depende de televisões, nem de sistemas complicados de leitores de cassetes de vídeo, etc., nem de nenhuma fisicalidade, e tem-se uma leitura instantânea. Quando folheamos o livro apercebemo-nos rapidamente de todas as suas vertentes. No livro, cada vez mais, há referências interactivas, isto é, "ir para a página tal", ver "referências no fim", "ver o capítulo a seguir'', portanto, ele próprio é interactivo sem sê-lo fisicamente e, portanto, continua a ser um objecto que não tem rival no meu ponto de vista. É extremamente complexo porque, cada vez mais, o tipo de livros que se faz estabelece, desde o princípio, uma relação entre os autores e os designers que vai ser também interactiva. A forma como os autores nos apresentam os textos ou documentos que querem documentar vai sofrer a influência da nossa intervenção. Estruturar e criar capítulos e secções, que outro tipo de ingredientes, faz com que o próprio autor tenha que reformular os textos ou readaptar as suas ilustrações de maneira a que os objectivos que se estão a pretender atingir sejam conseguidos como resultado desta interactividade.
AV- Como enquadra culturalmente a sua visão neste domínio?
JB - Eu faço parte de uma escola que se costuma definir como clássica-moderna, (mas se calhar não existe!). Uma referência teórica é Jan Tschíchold (1902-74), que andou próximo da Bauhaus, um alemão muito importante na formulação destas questões, autor de um manifesto de 1928, A Nova Tipografia, dedicado ao tratamento dos tipos (tipografia), que em inglês e em alemão não é o acto de imprimir mas de tratar o texto, a estruturação das palavras e da sua relação com as imagens. Ele vai a um ponto quase de asceta, pois refere que sempre que um leitor passar por um livro de um lado ao outro e não sentir a presença do designer gráfico, mas chegar aos seus objectivos, estamos a atingir o nosso último objectivo. Se estivermos a incomodar os leitores com pequenas coisas, com efeitos desnecessários, perturba-se a comunicação, pois são apenas superlativos decorativos sem qualquer racionalidade, e nesse aspecto não estamos a atingir os nossos objectivos. O funcionalismo está completamente ultrapassado; hoje em dia temos a noção de que design é muito mais do que a própria funcionalidade, faz parte do bem-estar e da relação com os objectos e um conjunto de outras relações que não são exercício específico das suas funções elementares.
AV- Essa estrutura ideativa é análoga à da arquitectura?
JB - O livro é um processo que se assemelha à arquitectura no sentido em que através dos espaços que vamos criando há uma semântica do entendimento - não convém confundir uma casa de banho com uma sala de entrada. Há uma semântica, um entendimento imediato dos destinos destes espaços na construção do livro. Há diversos espaços que são criados e os leitores têm que ir percebendo em que zona é que estão. Se estão na zona de introduções e de classificações técnicas, nas áreas mais cientificas, e encontram na descrição, na parte mais especulativa ou na mais teórica, se estão nas referências ou em partes que elaboram listas e são sistemáticas. Há que perceber de uma forma natural o que é que são notas, comentários, o que são legendas, títulos, subtítulos, textos que têm maior ou menor importância, que têm as citações. Toda a construção destes aspectos, ainda por cima limitada, é praticamente inultrapassável, tal como a televisão, ou o cinema que está circunscrito àquele quadradinho.
A televisão tem essa limitação, nós temos a nossa própria limitação, e de vez em quando podemos abrir; fazer uma coisa mais desmultiplicada, mais duas páginas para o lado. Nesse sentido, é uma verdadeira arquitectura do livro que se vai construindo, de maneira a que as pessoas se reconheçam, e pouco a pouco vamos criando pequenos ícones que as pessoas mais tarde vão reconhecer o seu significado, linguagens que não se têm que racionalizar; mas que se vão perceber intuitivamente.
AV- Há uma outro componente em termos de público e mediatização que são as revistas. Como é que as vê?
JB - As revistas são um outro projecto, em episódios, em que tem de haver uma familiaridade. Têm os mesmos problemas da arquitectura do livro, mas há uma componente de repetição que nunca é a mesma coisa, mas tendo um sabor e um conjunto de alocações de espaço. As pessoas a pouco e pouco, quanto mais familiarizados com a revista, melhor vão reconhecendo as coisas. Isto acontece também nos jornais. Se tiver só uma revista ou só um jornal, há que reconhecer onde está o noticiário nacional, a cultura, o desporto, os anúncios, e tudo isso tem que aparecer com uma lógica facilmente apreensível. Há que entender o que são artigos de fundo, de colecção, comentários, notícias e as coisas de ocasião.
Na revista há uma construção menos frequente, não acontece todos os dias, é mais tranquila, não está tão inquieta com o instantânea há que se perceber onde se localizam as referências centrais, os conteúdos, quem é que a dirige, quais são os artigos de fundo, as secções que são habituais, os temas, as pequenas notícias, as informações complementares. Não só permitir ao leitor reconhecer imediatamente, mas a pouco e pouco, criar habituações.
Conforme nos vamos familiarizando, vamos de propósito a determinadas secções, aquelas das quais mais próximos estamos, que mais nos interessam. Nesse aspecto, a revista pode actuar com a sua capa, com a introdução, com um tema dominante que deverá ser cativante, se está a dirigir às pessoas em termos de comunicação.
AV - Na estrutura das revistas de arquitectura, como acha que os projectos devem ser apresentados?
JB - Uma das principais preocupações e características de qualquer acção do projecto é que temos de entender o assunto que estamos a tratar. Precisamos de conhecer claramente os objectivos, e quando se pretende apresentar um projecto de arquitectura, o arquitecto ou o designer têm de estar dentro do assunto. Não sou favorável a que os designers sejam de tal maneira polifacetados que façam qualquer coisa que lhes apareça. Quando se está a fazer uma revista de arquitectura. deve-se estar por dentro dos problemas da arquitectura É indispensável que o fotógrafo que vai fotografar seja dirigido e tenha já uma sensibilidade para poder interpretar a própria da arquitectura que está a ser registada, e que não faça fotografias "artísticas". . . Deve-se mostrar qual é a problemática que está a ser revelada Esta é uma das primeiras características extremamente importantes, pois sempre que se faz urna paginação, deve-se ter em atenção os objectivos, deve ser acompanhada pelo editor; quais os pormenores a ser seleccionados, como devem estar enquadrados, ter noções das escalas que se está a apresentar, dos graus de aproximação, da leitura do projecto, e com outros aspectos críticos.
AV - E. o material gráfico, como deve ser apresentado?
JB -A arquitectura oferece outro problema grave para nós, pois os desenhos de arquitectura são difíceis de traduzir e, por isso, é preciso ter muito cuidado com a forma como eles são reconduzidos. A linha do desenho de arquitectura quebra, desaparecem muitas vezes esse tipo de pormenores e este é um aspecto técnico muito importante. Felizmente, hoje em dia. com a maior parte dos arquitectos com quem trabalho, quando tenho de reproduzir os projectos, como muitos deles já são feitos informaticamente, solicitamos os desenhos não só informaticamente como as escalas adaptadas e adequadas à reprodução. Não faz sentido que um projecto que tenha um tamanho AO, passe subitamente para um tamanho pequeno onde a quantidade de informação fica completamente perdida Portanto, para a representação da mesma planta ou do mesmo alçado, pedimos aos arquitectos que nos dêem a escala simplificada para que se garanta que tudo vai ser reproduzido. Estes são aspectos técnicos com que nós temos muito cuidado. No catálogo do Daciano, que é um exemplo recente, grande parte dos desenhos eram assim apresentados, foi feita uma programação minuciosa entre o próprio Daciano, o comissário, o fotógrafo e o designer, de maneira a que toda a documentação que fosse procurada, as fotografias focassem ou visassem salientar ou apresentar aspectos que se consideravam importantes do ponto de vista da leitura que se estava a fazer do objecto. Na distribuição das imagens foi calculado esse aspecto, porque, muitas vezes, o fotógrafo ao fotografar tem que apanhar outros aspectos que não aqueles que nos interessam apresentar. Tem que ser feita uma selecção que não é só estética, mas que apresenta o que objectivamente interessa apresentar. No caso dos desenhos do Daciano, em que muitos deles estavam envelhecidos pelos anos, foram fotografados com técnicas que garantissem a leitura mais adequada possível, e feitas correções em termos de computarização de maneira a garantir que o reconhecimento do desenho era assegurado.
AV- Nas revistas e na arquitectura há uma ambivalência de leituras, próprias imagens.
JB - As imagens, hoje, desempenham um papel cada vez mais dominante, e tem que se ter esse aspecto em atenção, pois têm que ser reveladoras dos conteúdos que se estão a querer apresentar.
AV- Como é que interpreta aquela frase "uma imagem vale mais do que mil palavras'?
JB - Se a palavra fosse suficiente para comunicar; dispensariamos todas as outras fomas de comunicação, mas não é suficiente. Precisamos de outras formas de comunicar. Precisamos de música. Gostamos das imagens e não há palavras que descrevam as imagens. De certa maneira reconheço que as imagens têm um poder de atracção que ultrapassam as palavras. Há um imediatismo e quase uma preguiça mental, pois o texto leva a uma reconstituição de uma imagem, enquanto a imagem está ali na sua totalidade não precisa de ser complementada A leitura do texto vai dar a uma reflexão sobre as imagens que nós sem a cultura necessária não as poderíamos reconhecer. O texto é indispensável para a complementar. Temos que ligar da melhor maneira possível o texto com a imagem.
AV - Para além da influência que Daciano Costa teve na sua formação, que outras considera relevantes?
JB - Há uma relação quase uterina, como diria o Daciano, entre mim e a obra dele, pois foi com 19 anos que entrei para o seu atelier quando nem se falava de design. Eu tinha uma ideia que ia ser pintor quando fosse "crescido'', pois desenhava razoavelmente. A dada altura surgiu uma forte interferência sociopolitica, passei desde muito cedo a fazer parte da resistência e pouco a pouco fui influenciado pelo marxismo, que é em termos culturais e intelectuais uma referência importante para mim. Começou-se a gerar uma contradição entre a pintura e o acto isolado associado a um negócio da burguesia Num contacto anterior ao Daciano, com o Frederico George Rodrigues, surgiu a ideia de que havia outra maneira de levar a nossa mensagem, outra maneira de estar no mundo, de contribuir para o valorizar em muitos aspectos através dos objectos do quotidiano. Na intervenção em fenómenos que vão da arquitectura ao urbanismo e que terminam nos objectos, no vestuário, etc, podiamos contribuir de uma maneira positiva para melhorar e para dar às pessoas a possibilidade de usufruírem de objectos de qualidade por preços muito acessíveis. Entretanto, o Daciano tinha iniciado um curso para meia-dúzia de pessoas ao qual ele dava apoio e, nessa altura, eu entro para o seu gabinete. De facto, essa foi a maior influência em termos da minha personalidade. Tudo quanto havia do período do racionalismo, da estruturação de uma profissão, da critica à mera inspiração, pois o racionalismo era o grande motor e todos os aspectos intuitivos eram afastados. São aqueles exageros que caracterizavam esta época Disciplinar a nossa actividade, conhecer mais ou menos os parâmetros em que estávamos a funcionar; percebermos que havia um programa e objectivos a atingir. Eu vivi ali uma época extremamente interessante. Não quer dizer que eu não tenha tido outras muito importantes, mas em tenmos de convívio, de transposição por osmose, foram dois anos e meio em que adquiri uma experiência fundamental. Depois fui para Inglaterra, mas é já mais um processo racional. A outra grande influência - mas já numa idade mais madura - foi Sebastião Rodrigues, que pela sua excepcional sensibilidade e talento, pela sua inteligência e pelo rigor e amor com que sempre trabalhou, reforçou a minha convicção na forma de desempenhar a profissão de designer gráfico.
AV - Esse aspecto da comunicação, ou de interface de influências, continua depois no ensino?
JB - É um dos aspectos que tem vindo a caracterizar significativamente a minha intervenção. Este convívio dá uma passagem extremamente importante para uma ruptura cultural também com Portugal quando fui para Inglaterra
Aí, a tradição pragmática e a flexibilização de conceito anti-cartesiana foi-me extremamente útil, porque eu já ia relativamente amadurecido. Estudei em Londres durante quatro anos, graças à bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para tirar o curso de Design. Faço parte da primeira geração de pessoas licenciadas em Design em Portugal. Nestes quatro anos em Londres com a bolsa da Gulbenkian, vivi um confronto extremamente interessante porque eu vinha de toda a racionalidade, da estruturação francesa (naquele princípio de anos 60 a França era o nosso máximo), as proposições cartesianas, o espírito todo arrumado, tudo dentro de gavetas, não havia coisas intermédias, e entro numa zona pantanosa onde não se percebiam exactamente os parâmetros e os limites, as coisas extravasavam com facilidade daquilo a que eu estava habituado. Para mim foi do maior interesse, porque pude fazer uma gestão extremamente útil, tinha algumas coisas arrumadas e ao mesmo tempo ia percebendo a "desorganização organizada" que os ingleses iam introduzindo e estimulando. Foi uma experiência fundamental que ainda hoje me acompanha. A outra, complementar a esta, a nivel de ensino com os meus alunos, é a interactividade que com eles se vai gerando, e também com as pessoas que tenho no meu ateliê.
Tem sido um processo de formação contínua, dinamizando formas de comunicar. Estando atento às novas maneiras de se encararem ou resolverem problemas.
AV- Quando nas revistas aparecem quase só imagens sem texto, a construção desse discurso é suficientemente clarificador do projecto?
JB - Obviamente que se estamos a trabalhar como deve ser; temos que definir os parâmetros e os objectivos desse projecto. Num dos catálogos da Expo de Sevilha, por exemplo, falhou o texto. Tivemos que construir um livro que deveria sugerir a quem passeasse sobre ele um Portugal contemporâneo isento de lixo, de barracas, com os aspectos melhores, mas sem ser à Estado Novo, e aí tivemos de construir um discurso sem texto. Acho que no caso da arquitectura pode-se construir um livro sem texto, mas tem de se ter muita atenção para que as pessoas, à medida que o vão percorrendo, saibam quais são os objectivos que se estão a criar: Não dispenso em geral o comentário e a reflexão. O comentário e a reflexão é o que nos vai permitir amadurecer sobre a obra, e perspectivar aquilo que não se vai conseguir perceber; a não ser que seja um especialista nessa matéria. Isso tem sido fundamental em todos os projectos que tive com o Daciano. Cada uma das pessoas que deram a contribuição para o catálogo não o fizeram sem um propósito, cada um tinha uma área específica cuidadosamente seleccionaram-se temas, de forma que essas facetas fossem apresentadas com rigor e não se estivesse sistematicamente a repetir as mesmas coisas. O João Paulo Martins zelou para que nenhum dos projectos fosse apresentado sem um comentário que nos permitisse localizar com precisão o que estava a acontecer; tanto mais que estes problemas do design e da arquitectura sempre que são apresentados em livro é sempre de uma maneira deficiente, faz sempre a componente física da vivência. A arquitectura, os desenhos e tudo o mais têm que ser apresentados com muito cuidado a não ser quando uma área é muito técnica, sob pena de tomar árida essa leitura Portanto, há que ter muito cuidado, porque para vermos arquitectura temos que andar dentro dela A arquitectura é especialmente difícil de se transpor para a bidimensionalidade, porque contém uma quantidade de inter-relações espaciais que estão sempre a ser geradas pela posição do observador dentro desse espaço, e estes comentários são imprescindiveis para que se perceba. Outro componente importantíssimo na arquitectura é o próprio desenho de arquitectura, que não é só aquilo que ele representa nem só as suas funções, mas também o gesto de pôr o traço, quase pictórico, plástico da forma de desenhar; e isso também não deixa de nos interessar; pois é uma maneira de se estar lá Além de revelar plasticidade, há também todo o encanto de desenhar que ultrapassa o rigor da própria arquitectura.
AV - Qual foi para si a evolução e o sentido do design gráfico?
JB - Eu escrevi num minitexto: "Primeiro o design surgiu para mim como maneira de conciliar a minha atitude ideológica com o meu desejo de intervir esteticamente. Depois evoluiu no sentido de conseguir dominar as dificuldades resultantes de problemas que me são postos com a minha própria personalidade." Isto foi uma das maiores dificuldades para quem tinha uma formação mais ou menos de artista plástico, e de repente tinha que, em função dos objectivos, conciliar as minhas próprias atitudes. "Hoje, transformou-se no prazer de vencer o desafio de gerir compromissos técnicos, culturais, económicos e de tempo, tentando conseguir simultaneamente resultados satisfatórios com prazos indescritíveis e orçamentos realistas" (in Design Lisboa 94, CC Belém). Mais ou menos isto descreve o que tem sido a minha vida profissional...
AV - Como é que determina esta nova maneira de olhar o mundo? Ele não se revela só nas vanguardas artísticas ou nas revoluções artísticas?
JB - O século XX foi um século de clarificação e de abertura de campos. Geraram-se conflitos que ainda hoje persistem na delimitação e transposição de territórios, pois o design estava disperso por uma multiplicidade de profissões, de artefactos, de artesãos e de técnicos. Ao separar o acto de criar do acto de fazer deu-se uma clarificação que gerou transposições culturais de todo o tipo. O primeiro grande fenómeno foi sem dúvida a Bauhaus, com a ideia da integração e da restituição de um conjunto de actos humanos que não pertenciam à grande cultura, que estavam marginalizados como uma prestação subserviente, sendo as grandes obras as da arquitectura e as da pintura. Todas as outras intervenções do espaço e da fabricação de objectos consubstanciavam esse grande mundo da arquitectura, e, neste caso, is to contribuía para a definição desse aspecto. Mas isto foi evoluindo e há várias intervenções extremamente importantes não só de natureza social e de natureza estética mas, também, um conjunto de intervenções cientificas. Considero, por exemplo, que a Teoria da Relatividade de Einstein veio dar um contributo imprescindiveI para se passar a entender a forma como todas estas coisas estão contidas em planos que não são absolutamente estanques. Por exemplo, a sistematização e todos os processos a que se chama a metodologia do design, aparece no pós-Guerra no contexto da escola de ULM, que foi uma escola ortodoxa de grande fiieza, exclusivamente destinada à funcionalidade e à pureza das suas formas.
AV — Como vê as perspectivas futuras no domínio gráfico face à evolução tecnológica?
JB — A cibernética e a teria da informação são estruturações do conhecimento que decompõem fenómenos complexos numa série de sub-problemas identificados. Esta transposição que se concretiza mais nos anos 60 e 50 tem haver com as passagens das várias influências das culturas de diversas naturezas, da matemática e todas as reflexões filosóficas que dão uma outra perspectiva integradora para além da que estava circunscrita à tradição da história da arte. É uma história que não é só social, é da cultura, da estética. Da ciência, e tudo isto se inter-influência numa tangente que é a nossa maneira de estar no mundo mas que resulta de todas estas influências culturais. Os fenómenos tecnológicos passaram a ter uma influência que anteriormente não existia. Sem deixar de ter a importância que têm, a economia. as posições éticas, as preocupações de natureza social, estes fenómenos de natureza técnica influíram profundamente na nossa profissão Na área do design gráfico, surgiu um fenómeno que nos veio afectar profundamente, e que eu tenho estado a viver intensamente, que é o computador ter passado para cima da nossa mesa. Nós estávamos em grande parte circunscritos a técnicas que nos impediam de ultrapassar determinados efeitos e determinadas inter-relações estético-conceptuais que eram quase impossíveis de atingir: Podiam-se fazer em determinados casos com uma grande antevisão ou com um grande trabalho de ilustração manual. .. Antes, as letras estavam circunscritas a uma peça de metal ou uma peça que fisicamente era quase inultrapassável. Hoje o computador permite-nos alterar profundamente todos os parâmetros, pôr as coisas de pernas para o ar de todas as maneiras e feitios, modificar tamanhos, sobrepor, alterar fotografias, transformar cores, o que era azul passa a verde, misturam-se umas coisas dentro das outras... E isso, no nosso caso, tem que ver com a comunicação, não será tão óbvio na arquitectura.
AV - Como relaciona a importância do desenho tradicional e do computador na ilustração?
JB - O computador é uma componente tecnológica que veio afectar profundamente a nossa maneira de organizarmos e distribuirmos o espaço. Em todo o caso, depois de um período de grande excitação que caracterizou o princípio dos anos 90 onde se fizeram todo o género de loucuras, em que as coisas apareciam todas tortas e viradas, e ''fumos" e cores, está-se a regressar a alguma tranquilidade porque se considerou que isto era uma espécie de novo riquismo que impedia alcançar os objectivos que se pretendiam. Numa perspectiva atenta à modernidade mas também consciente daquilo que a tradição nos permite recuperar e aproveitar; hoje está-se a tranquilizar cada vez mais esses aspectos. Dispomos de ferramentas que optimizam o processo, e eu posso dizer, por exemplo, que no catálogo do Daciano há imagens que foram reconstruídas; não fazia sentido haver uma agressão fisica, um grafitti numa obra de arquitectura é desnecessário. Não porque se queira mentir, mas hoje podemos tirar esse grafítti, ou retocar uma pedra que se partiu involuntariamente repondo o objectivo do arquitecto. Transitoriamente estava assim, o fotógrafo fotografou assim, mas amanhã irá ser corrigido, e nós podemos hoje corrigir tecnicamente essas coisas. restabelecer, reconstruir quase, e restaurar: Temos que estar atentos. não podemos chegar ao absurdo. Temos que ter noções dos condicionamentos, estar muito atentos a esses aspectos técnicos e científicos e, por outro lado, às noções humanísticas e aos aspectos que queremos incutir na nossa própria obra.
AV- Em termos de arquitectura, de algum modo também há uma aproximação ao universo gráfico, e o grafismo arquitectónico é extremamente importante. Como vê esta relação?
JB - Há duas maneiras de interpretar a questão: há a parte do grafismo no sentido em que ele revela uma certa modelação de planos ou de cores através do espaço, e é nesse aspecto que a arquitectura se consegue aproximar, e há o grafismo que passa por um problema de comunicar numa relação entre texto e imagens. Volto a reforçar; é esse o propósito e a minha maneira de estar inserido no mundo profissional. Penso que é preciso definir os objectivos, interiorizar quais são os problemas que estamos a viver e propor soluções adequadas conforme as nossas especialidades. Por outro lado, há os campos de intervenção. e o extravasamento das fronteiras. e ninguém pode hoje deixar de ser influenciado por conquistas que se obtiveram quer seja num redesenho de letras quer na capacidade de distribuir padrões, formatos. e de criar repetições modulares que são transpostas para a arquitectura e para monumentos que constituem formas de caracterizar espaços, enquadramentos e de usufruir prazer de toda essa envolvência. Existem cada vez. mais na arquitectura, como noutras formas de expressão visual, os ascetas e os extrovertidos exagerados.
AV-Há uma outra dimensão paro além da arquitectura que é o território e universo urbano, e a ainda há muito que fazer.
JB - Nestas coisas está sempre tudo por fazer e muita coisa que está feita e que é difícil desfazer: Esse é se calhar o nosso maior problema, o que está feito e é difícil desfazer.
AV- Nos anos 80, quando ainda não existia auto-estrada para o Norte, havia por todo o lado na estrada nacional uns grafismos fantasmagóricos.
JB - Também me lembro disso, era pavoroso. Esse aspecto representa várias rupturas e não foi só em Portugal que a passagem para as civilizações industriais trouxe enormes rupturas. Em Inglaterra. a ruptura com o meio agrícola foi de tal forma abrupta que as pessoas deixaram de saber cozinhar. Em Portugal, para além de termos aspectos de arquitecturas populares extremamente elegantes, arabescos e desenhos de uma grande elegância - um grande designer que reaproveitou muitos desses temas foi Sebastião Rodrigues, que em termos gráficos foi até buscar incisões, desenhos no barro, na arquitectura, etc. -, não temos uma grande tradição no desenho de letra. A verbalização escrita não está muito enraizada em Portugal. Somos de uma cultura oral, não confiamos sequer em grande parte das sinalizações que estão à disposição. Para nós, não há nada como a confirmação de boca a boca de onde as coisas ficam. Há uma cultura que não tem grandes tradições na área das letras, das placas e dos sinais identificadores. Em Inglaterra. pelo contrário, vê-se isso através de grafismos das épocas medievais. Têm placas desenhadas, letras, palavras, escritos. Há uma tradição que passou de geração em geração.
Na instrução primária em vez de letras simples e bem desenhadas, ensinam-se umas coisas complicadíssimas. Vejo as torturas que fazem às crianças ainda hoje com aqueles "Q", com aquelas curvas, e quando chegamos aos dez anos começamos a fazer um "Q" com uma bola com um tracinho. Durante anos, obrigaram-nos a fazer uns "E" que dão não sei quantas voltas. Chegamos às nossas aldeias e não temos nomes de rua, nomes de sítios. A aldeia onde eu vivi não tem nada escrito, nem a taberna Só tinha uma mercearia, duas tabernas e uma padaria. Não está lá nada escrito. As pessoas sabiam onde era e para se chegar ao estado de estar escrito alguma coisa temos de estar num de urbanidade muito elevado, porque ainda há 20 ou 30 anos nenhuma repartição de Estado estava identificada. Quanto muito, o lado comercial é que tinha alguma preocupação em se revelar.
AV - Em Lisboa, no Porto, e noutras zonas do país também há informações que assumem um excelente design.
JB - Em todo o caso quer por importação quer por outras razões - e eu até fiz um mini livrinho sobre esse aspecto - existem muitos bons exemplos de letras colocadas em fachadas e muitíssimo bem desenhadas quer na Baixa lisboeta quer no Porto onde há soluções elegantissímas. Temos pela frente muito que fazer. Felizmente cada vez mais acompanhados por colegas, muitos dos quais me orgulho de ter contribuído para a sua formação. O desafio é aliciante ...